Transgresión

Sobre algumas das coisas que poderia ter feito aqui:

Poderia ter escrito a palavra “prego”a torto e a direito tantas vezes quantas fossem necessárias, construindo uma linha que ocupasse o espaço, o qual daria um resultado semelhante ao que foi a minha instalação e seria algo similar a isto (ainda que não levasse aspas):

“pregoogerppregoogerppregoogerppregoogerppregoogerppregoogerppregoogerpprego”

Poderia ter escrito um texto de 7000 caracteres (incluindo espaços) mas não sei se queria. Não sei se queria porque não me apetecia ou simplesmente não tinha a necessidade de o fazer.Poderia também ter convidado a Sílvia Zayas (que não tenho a certeza,mas acho que também participa neste livro) para um intercâmbio. O intercâmbio basear-se-ia em que cada uma de nós escrevesse na parte correspondente à outra, de tal modo queiríamos escrever o que julgávamos que a outra poderia ter escrito e vice-versa. E neste preciso instante, ela estaria a escrever os meus 7000 caracteres caso considerasse necessário e eu divertir-me-ia muito mais imaginando o seu texto que escrevendo o meu. Mas após ter decidido o que ia fazer, achei que não valia a pena propor-lhe isto, ainda que, provavelmente, o que escrevi sobre o que eu queria fazer também se pudesse aplicar a ela, embora também caiba a possibilidade de que não gostássemos do que cada uma escrevesse no lugar da outra-um risco que não sei se queria assumir nesse momento.

Acabei de telefonar-lhe mas não consegui falar com ela.

Poderia ter falado de imensas coisas, talvez demasiadas. De forma que nada parecesse ter relação com o que se propõe neste livro,mas que, de algum modo essa relação existisse.

Poderia ter feito um diário e tentado escrever objectivamente sobre o que foi o meu trabalho e experiência, mas isso requeria um esforço que, nesse momento, considerei desnecessário e para o qual não tinha tempo. Este texto incluiria uma revisão das minhas memórias, dos meus trabalhos, das minhas anotações, etc.. Poderia ter escrito sobre qualquer outra coisa que me apetecesse já que tinha liberdade para preencher 7000 caracteres.

Poderia ter falado unicamente sobre a minha obra e fazer um percurso denso através dela. Uma minuciosa descrição do material,a disposição, as dimensões, os conceitos e tudo aquilo que tem aver com a mesma, o tê-la feito, o vê-la. Seria algo como um estudo detalhado de tudo o que a gerou e de tudo o que gera, no qual incluiria outras conjecturas a partir do que cada um pode pensar sobre uma disposição quase casual dada por uns pregos torcidos e oxidados.

Poderia ter escrito sobre o que foi para mim a experiência, mas não deixaria de ser um ponto de vista pessoal e absolutamente subjectivo do que eu vivi ali, e que, obviamente, não interessa porque também tem a ver com o que vivi antes e depois, e isso,aos leitores, acho que não diz respeito.

Poderia ter deixado de separar umas coisas das outras, e falar em geral, mas acabava por ser bastante mais eficiente fazer distinções entre umas coisas e outras, apesar de estar consciente de que pudessem existir relações que preferiria ignorar.

Poderia ter enumerado, simplesmente, tudoo que de algum modo foi Fronte(i)ras:

“ Residência–estranhos–conhecidos–viagem–casa–cães–ansiedade–pânico–solidão–horizonte–telefone–procura–confiança–amizade–encontros–pregos–metros–fotos–chaves–música–silêncio–murmúrio de rio–linhas-meu espaço–sensatas–aniversários–Idília–bolo–etc.”.Ou talvez pudesseordená-las alfabeticamente:“acidente-água correndo–amizade–ansiedade–procura–casa–camião–estrada–pregos–comidas–confiança–conhecidos–cordéis–cordas–aniversários–curiosidade–curvas–encontros–escritos–etc.–estranhos–fotos–gentes–fios–horizonte–ida–Idília–internet–livrete–linhas–chave–emails-meu espaço–metros–montanhas-murmúrio de rio–música–cheiros–palavras–pânico–passeio–cães–pedras–pedra de xisto–residência–rio–silêncio–solidão–bolo–telefone–uvas–viagem-volta”. Embora pudessetambém utilizar estas palavras e ordená-las segundo a sua sucessão no tempo: “estrada–viagem–casa….” (Continuar a fazeresta lista requer demasiado espaço e tempo).Poderia ter transcrito o texto que escrevi na altura e não dizer nada mais, ou sim…

Talvez esta opção teria sido bem mais prática e, para além disso,preencheria pelo menos 2324 caracteres, e seria uma coisa assim:

Transgressão (ou primeiro ensaio sobre a possibilidade desnecessária de construir uma fronteira à minha medida) 2007.“Tenho que falar durante vinte minutos aproximadamente sobre fronte(i)ras, ainda que, como diria Bartle by o escrivão “ preferiria não o fazer”. Tentarei, portanto, ser o mais breve possível ao falar sobre o que fiz; porque, para além disso, acho que com o texto não pretendo dizer muito mais do que com a obra.

Entre outras coisas, fiz uma linha na parede delimitando um espaço com um limite desnecessário sobre algo que já tem seus próprios limites.

Olhei muitas vezes para o horizonte, e pensei muito nele como fronteira visual, como fronteira inalcançável, como o princípio ou ofim de nenhuma parte, como uma fronteira que se move contigo,aonde quer que vás.

Tenho que dizer também que a minha relação com a fronteira é pessoal, que nunca tive a necessidade de cruzar uma fronteira real,só em viagens, por prazer…e isto não significou nada e especial para mim…, por exemplo, quando ia para Nodar cruzei uma fronteira, uma ponte, neste caso, ainda que nada mudasse,simplesmente, as pessoas falavam de forma diferente, o tabaco e a gasolina eram mais caros, e a partir desse momento as chamadas telefónicas também, e as multas, se as tivesse, teriam que ser pagas em numerário.

… também a hora era uma a menos… Fora disso, nada mudou,apenas a paisagem, os sinais…

Já em Nodar, cruzei a porta de uma casa alheia e instalei-me,convivendo com mais gente. Isto sim era diferente, mas não tanto,e uma vez quebrado o gelo… ali estou, para trabalhar em algo… e digo algo, porque não sabia muito bem o que era aquilo… Agora sim, uma linha, ainda que antes fossem outras coisas… procurando construir fronteiras desnecessárias, tentando responder a um tema através de uma experiência pessoal e artística.

Agora acabei um trabalho acerca de um tema sobre o qual nunca tinha trabalhado;sei que a obra é coerente com as minhas pretensões e também acredito que este texto o seja.Muito obrigado a todos, e em especial aos que participaram nesta experiência, por tudo o que foi vivido e aprendido.”

Foi o que me pareceu correcto na altura, e agora, ao lê-lo, não me arrependo, o qual talvez me devesse preocupar, ao pensar que não amadureci nada desde então, mas prefiro pensar que simplesmente não tenho tempo para isso.

Poderia também não escrever nada e deixar esse espaço vazio… e o texto poderia começar assim: “7000caracteres: (aos quais há quesubtrair os 75 que já utilizei aqui)”.

Suponho que poderia fazer muitas outras coisas mas já não há caracteres disponíveis pelo que convido-vos a imaginar o que eu poderia fazer ou o que não fiz.

Artista galega, doutorada em Belas Artes pela Universidade de Vigo, que desde 2003 tem apresentado o seu trabalho multidisciplinar em diferentes certames, festivais e mostras individuais e colectivas quer na sua região de origem quer na restante Península Ibérica (Espanha e Portugal),Inglaterra, Alemanha, etc.

A sua intervenção desenvolve-se nas áreas da fotografia, do vídeo e da performance, nomeadamente em espaços públicos, tendo a artista desenvolvido obras que aliam uma reflexão carregada de ironia sobre os códigos e comportamentos sociais a uma pesquisa sobre o olhar, convocando novos pontos de vista (num sentido literal) para ver o espaço urbano e as correspondentes acções humanas. A este título, merecem uma referência as obras em vídeo “s.t. (grua)” de 2006, “s.t. (primer ensayo parauna película redonda)” e “s.t. (camión)”, ambas de 2005.